Por Sérgio Rebêlo
Um fantasma ronda a economia global, e ele tem origem na China. Sinais crescentes de uma espiral deflacionária, fenômeno que paralisou o Japão por décadas e que agora é apelidado de “japonização” da China, começam a se materializar. Um recente e aprofundado estudo da Bloomberg, intitulado “The True Cost of China’s Falling Prices”, revelou que a deflação no país asiático é mais acentuada do que os dados oficiais sugerem, com preços de bens de consumo em queda livre e uma parcela recorde de empresas operando no prejuízo. Este cenário não se restringe às fronteiras chinesas; ele representa uma nova onda de desafios econômicos globais, na medida em que a China, a fábrica do mundo, começa a exportar sua deflação. Para o Brasil, um parceiro comercial estratégico, os reflexos são complexos e potencialmente severos, com a indústria automotiva nacional na linha de frente de uma tempestade iminente.
Este artigo investiga os impactos da deflação chinesa sobre a economia brasileira, com um foco particular na vulnerabilidade da cadeia automotiva. Analisaremos o histórico da relação comercial sino-brasileira, a recente e avassaladora penetração dos veículos chineses no mercado nacional, as medidas de contenção propostas pelo governo e pelas associações de classe e, por fim, avaliaremos se tais ações são suficientes para mitigar os riscos que se avizinham para um dos setores mais importantes da indústria brasileira.
O Espectro da Deflação na China
O termo “japonização” refere-se à estagnação econômica prolongada, acompanhada de deflação, que o Japão experimentou a partir da década de 1990. A China, hoje, exibe paralelos preocupantes: excesso de capacidade industrial, demanda doméstica enfraquecida, um setor imobiliário em crise e uma população em declínio. A análise da Bloomberg aponta que, enquanto o Índice de Preços ao Consumidor (CPI) oficial oscila perto de zero, uma análise de dezenas de produtos de consumo diário revela quedas de preço muito mais drásticas.
Este fenômeno é impulsionado por uma competição interna predatória, que as autoridades de Pequim chamam de “involução”. Com o mercado interno saturado, as empresas chinesas são forçadas a uma guerra de preços para sobreviver, resultando em margens de lucro espremidas e uma onda de prejuízos. Ainda segundo a Bloomberg, cerca de 25% das empresas chinesas listadas em bolsa reportaram perdas no primeiro semestre de 2025, a maior proporção em 25 anos. A única saída para esse excesso de produção é o mercado externo, transformando a deflação em um produto de exportação.
A Relação Brasil-China e a Invasão Silenciosa no Setor Automotivo
A parceria comercial entre Brasil e China é marcada por uma profunda assimetria que expõe a fragilidade da indústria nacional. Enquanto o Brasil se consolidou como um fornecedor massivo de commodities (90,7% das exportações para a China em 2023), tornou-se um grande importador de produtos manufaturados de alta tecnologia (74% das importações industriais da China). Nenhum setor ilustra melhor essa vulnerabilidade do que o automotivo.
Nos últimos dois anos, o mercado brasileiro foi inundado por veículos chineses que combinam tecnologia de ponta com preços extremamente competitivos. No acumulado de 2025, as vendas de carros de origem chinesa cresceram 52,9%, um ritmo seis vezes superior ao do mercado total (8,9%). Essa ofensiva fez com que sua participação de mercado saltasse para 5,7% no acumulado do ano, com picos que ultrapassaram 10% em meses específicos como agosto, consolidando as marcas chinesas como a quarta força de vendas no país. No segmento de veículos elétricos, o domínio é ainda mais esmagador, superando 80% de todas as vendas em 2025 16. O resultado é que, entre janeiro e setembro de 2025, os veículos chineses já representavam 35% de todos os carros importados pelo Brasil.
A Indústria Reage: Medidas de Contenção e Seus Limites
Diante do avanço avassalador das importações, as associações de classe e o governo brasileiro começaram a se movimentar. No entanto, a análise das medidas revela uma resposta lenta e com brechas significativas.
O Clamor por Proteção
A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) tem sido a voz mais ativa na denúncia do que considera uma concorrência desleal. Desde o início de 2025, a entidade pede a recomposição imediata da alíquota de importação para 35%, argumentando que a tarifa atual (entre 25% e 30% para veículos montados) é uma das mais baixas do mundo entre países com indústria automotiva relevante. Além disso, a Anfavea encomendou estudos para apurar a prática de dumping (venda abaixo do custo de produção) por parte das montadoras chinesas, um processo que pode levar a uma investigação formal.
O Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores (Sindipeças) ecoa a preocupação, apontando para um déficit comercial recorde no setor de autopeças, que atingiu US$ 8,9 bilhões até julho de 2025. As importações da China, principal origem dos componentes, cresceram 22% no período, aprofundando a dependência brasileira.
A Resposta do Governo: Lenta e com Brechas
A resposta do governo tem sido uma mistura de planejamento de longo prazo com ações reativas de curto prazo. O principal instrumento de política industrial é o programa Mover (Mobilidade Verde e Inovação), que prevê incentivos fiscais para empresas que investirem em pesquisa, desenvolvimento e produção local de tecnologias de baixa emissão. O programa é um passo importante na direção correta, mas seus efeitos são de longo prazo e não resolvem a crise de competitividade imediata.
No front tarifário, o governo estabeleceu dois cronogramas distintos para a retomada da alíquota de 35%:
1.Para veículos completamente montados (CBU): A tarifa, que hoje está entre 25% e 30%, atingirá os 35% em julho de 2026.
2.Para veículos desmontados (CKD/SKD): Após pressão da indústria, a Camex antecipou a alta da tarifa para janeiro de 2027. No entanto, como contrapartida, criou quotas de importação com alíquota zero por seis meses, no valor de US$ 463 milhões, para beneficiar empresas que estão instalando fábricas no país.
Análise Crítica: Por Que as Medidas Atuais Falham?
As ações tomadas até agora são insuficientes por quatro motivos principais:
1.Timing e Brechas: A proteção tarifária, além de adiada, possui brechas. A janela de vulnerabilidade é de ~8 meses para carros montados e de ~14 meses para kits desmontados. Pior, a existência de quotas com alíquota zero para kits (CKD/SKD) funciona como um incentivo perverso para que as novas montadoras continuem importando em vez de acelerar a produção local e o desenvolvimento de fornecedores.
2.Intensidade: Mesmo a alíquota final de 35% é significativamente menor que as barreiras impostas por outros blocos, como os EUA (100%) e a Europa (até 48%), que também enfrentam a ofensiva chinesa.
3.Falta de Abrangência: As medidas focam nos veículos completos, mas deixam a indústria de autopeças, que gera a maior parte dos empregos, em uma situação de extrema vulnerabilidade, como demonstra o déficit crescente apontado pelo Sindipeças.
4.Ausência de Condicionalidades: As novas montadoras chinesas anunciam investimentos bilionários, mas continuam adiando o início da produção local enquanto se beneficiam de um mercado aberto para suas importações. Faltam mecanismos que vinculem o acesso ao mercado e aos benefícios fiscais a um cronograma claro e obrigatório de nacionalização.
O Que Mais é Necessário? Uma Estratégia Sustentável
Para evitar um colapso setorial, o Brasil precisa de uma estratégia mais robusta e ágil, que combine defesa comercial com incentivos à inovação. As seguintes ações seriam requeridas:
- Ações de Curto Prazo (Emergenciais): Implementar salvaguardas temporárias, como um sistema de quotas ou licenciamento não-automático para importações, a fim de gerenciar o fluxo de produtos nas janelas de vulnerabilidade até 2026/2027. Além disso, é crucial acelerar a investigação de dumping e aplicar direitos compensatórios provisórios se os indícios se confirmarem.
- Ações de Médio Prazo: Fortalecer o Programa Mover com mais recursos e, crucialmente, vinculá-lo a metas progressivas de conteúdo local. A política industrial não pode ser apenas sobre P&D, mas também sobre garantir que a produção e o emprego se materializem no país. É preciso, ainda, criar um programa específico de apoio à cadeia de fornecedores de autopeças, com linhas de crédito para modernização e incentivos para a produção de componentes para veículos eletrificados.
- Visão de Longo Prazo: O Brasil deve definir uma estratégia nacional de eletrificação que vá além do veículo, incluindo o desenvolvimento da cadeia de minerais críticos (lítio, níquel), a produção de baterias e a infraestrutura de recarga. A dependência da China não deve ser trocada por outra, mas sim por uma capacidade tecnológica e produtiva autônoma.
Conclusão: Uma Encruzilhada Estratégica
A combinação da “japonização” da China com a estrutura assimétrica da relação comercial sino-brasileira coloca a indústria automotiva nacional em uma encruzilhada. As medidas tomadas até agora, embora bem-intencionadas, são reativas, lentas e insuficientes para conter uma onda competitiva de magnitude sem precedentes. A janela de oportunidade para agir está se fechando.
O desafio para o Brasil não é se isolar da China, mas sim redefinir os termos dessa parceria, usando seu poder de mercado para atrair investimentos produtivos, exigir transferência de tecnologia e fomentar a inovação local. Sem uma estratégia clara, robusta e imediata, que combine defesa comercial inteligente com uma política industrial ambiciosa, a sombra do dragão deflacionário poderá obscurecer permanentemente o futuro da indústria brasileira, transformando o que hoje é um desafio competitivo em uma crise estrutural de longa duração.
Sérgio Rebêlo é sócio-Diretor da FactorK, consultoria, com ênfase em estratégia, programas de internacionalização e fusões e aquisições. Administrator de Empresas pela EAESP-FGV, com MBA pela EAESP/FGV Brasil e OneMba -Kenan-Flagler Business School (Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill); EGADE (Tecnologico de Monterey/ Graduate School of Business Administration); Erasmus School of Business/ Rotterdam School of Management and The Chinese University of Hong Kong. Membro do Beta Gamma Sigma Society. Palestrante em eventos nas áreas de óleos básicos e lubrificantes: ICIS PanAmerican; ICIS London; Lubgrax; AEA; Encontro com o Mercado – Lubes em Foco.Diretor Financeiro (Probono) do Museu de Arte Moderna de São Paulo entre 2019 e 2022.